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As memórias de uma nerd

As nerdices de pai para filha

Foto: Maria Melo
Foto: Maria Melo
Por Maria Melo*

Uma das primeiras memórias que tenho, ali na primeira metade dos anos 90, é a de ser arremessada para o alto pelo meu pai todas as noites, enquanto ele jurava que eu era a estrela mais brilhante do céu. Sirius é o nome dessa estrela, que, na verdade, é um sistema de duas estrelas muito próximas do nosso planeta, como eu descobriria algum tempo depois. Ela faz parte da constelação Canis Major, que acompanha Orion, e, até hoje, é a minha favorita. Sirius também é o nome de um dos melhores personagens da saga Harry Potter, que eu viria a ler — em inglês, com toda a impaciência para traduções que já existia em mim –, quando ainda estava na escola. Mas, talvez, eu esteja me adiantando um pouco.

O fato é: mesmo naquela época, as minhas tentativas de me unir às estrelas não falharam por completo. Sim, ainda estou na Terra e, a essa altura, sou capaz de entender que provavelmente jamais sairei dela. O que tirei disso foi essa quase obsessão por aprendizado que permeia o termo “nerd”. Experimentei uma fatia de cada mundo imaginário logo cedo. Começando pela distopia, que me trouxe, de cara, 1984, passando pela fantasia e pelas inúmeras tentativas de finalizar O Senhor dos Anéis e retornando às estrelas e ao céu, com Star Trek e Star Wars diretamente da locadora mais próxima de casa. Lembro, inclusive, de ver a nova trilogia no cinema, com o meu pai e um sabre de luz de papel. Na época, não achei tão ruim assim. Era uma criança.

Assim, o meu mundo “geek” sempre esteve repleto de referências não-literárias. Sim, eu devorava livros em questão de horas e, sim, muitos deles fugiam do tema sci-fi, como Sherlock Holmes — que acabou virando série, incluindo o Benedict Cumberbatch e o Martin Freeman e ganhando o coração de todos nós. Mas sempre teve um pouco mais; um Pink Floyd me levando para galáxias distantes, um desenho clássico dos X-Men passando na TV, um jogo em que um encanador de bigode montado em um dinossauro de sapato percorria um reino matando tartarugas aladas. O meu primeiro videogame, aliás, rendeu alguns dos melhores dias da minha vida, tendo o meu pai como Player 1 no Super Mario World e eu logo atrás, sofrendo com o Luigi.

E esse é o ponto de todo esse relato, na verdade. Dentre os inúmeros motivos que um ser humano pode ter para continuar apegado às paixões da infância, eu escolhi a saudade. O meu amor pela ciência, pela ficção, pelas estrelas e pelos livros e filmes que revisito sempre que posso vem, em grande parte, daquele arremesso em direção ao céu. Eu me recuso a esquecer dele, porque, pouco mais de uma década depois, tive que me despedir de vez. O meu Player 1, que também era o herói de todas as minhas histórias, foi embora e deixou para trás o vazio da mortalidade. Cientificamente, eu conseguia compreender a finitude da vida, mas uma parte de mim desejava poder apertar o “Reset”, começar a leitura de novo, reviver o personagem que jamais deveria ter morrido, cruzar o portal para um universo paralelo. Confesso, ainda desejo tudo isso. Mas cá estou, Luigi sem Mario, Chewie sem Han Solo, qualquer personagem de O Senhor dos Anéis sem o Gandalf, equilibrando a realidade que conheço com a ficção (literária ou não) que me aquece o peito.

Nós não estamos mais no começo dos anos 2000, não estamos mais nos anos 90. Hoje, a cada visita à livraria descubro uma edição nova de Sherlock Holmes. O Senhor dos Anéis ganhou uma capa tão linda, que merece uma estante própria. Quem não tem tempo para ler, pode ouvir o Stephen Fry e o Martin Freeman narrando O Guia do Mochileiro das Galáxias, ou ainda dar um mergulho científico no Stephen Hawking e Richard Dawkins em áudio e vídeo. Se antes era difícil colecionar HQs, hoje elas estão em todo lugar, com capa dura e compilações de todos os tamanhos, de Bill Watterson a Garth Ennis e Allan Moore. Também existe todo o universo cinematográfico da Marvel. E, com alguma sorte, dá para encontrar coisas belas como a edição prateada de Eu, Robô em sebos, gastando quase nada.

Tudo isso, claro, me traz uma alegria imensa. Me deparo frequentemente com coisas que me lembram de outras coisas, como se fios da minha memória estivessem espalhados por todo lugar. Volto à infância, às primeiras aulas de ciências, às estrelas e suas jornadas e guerras. Me sinto abraçada pelo mundo fantástico que pessoas brilhantes criaram e que eu adentrei um pouco por influência, muito por curiosidade. Continuo me deparando com novidades, seja em uma HQ que nunca li, um estudo complexo sobre buracos negros que provavelmente jamais entenderei, um jogo que não joguei até o fim. Todo esse universo, que calhou de se popularizar nos últimos anos, faz parte da minha essência. Ele alimenta a eterna sensação de que não importa se hoje eu sou o Player 2, com o controle existencial que não funciona direito, um dia tive comigo o meu Player 1, o meu trampolim para as estrelas, o herói que mereci e do qual precisei. É isso que, em meio a tantas comemorações, realmente importa.
Maria Melo
Passo a maior parte do tempo em silêncio, até que falem comigo sobre gatos. Ou preguiças. Ou desenho. Ou o Batman. Ou galáxias. Ou ainda, gatos fantasiados como o Batman desenhando preguiças em outras galáxias. Apenas imagine isso. De nada.

 

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