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As Coisas Que Perdemos no Fogo, de Mariana Enriquez | Resenha

“As Coisas Que Perdemos no Fogo”: terror, crítica e reflexão

Um convite a uma Argentina que não está presente nos cartões postais. Sem tango, Messi ou os deliciosos alfajores. Apenas sombras de um país com seus problemas sociais, crises econômicas constantes e os reflexos de uma das ditaduras mais cruéis da América Latina. Em As Coisas Que Perdemos no Fogo, primeiro livro da escritora e jornalista Mariana Enriquez publicado no Brasil – pela Intrínseca -, somos levados a 12 contos de arrepiar e que, sobretudo, nos fazem refletir sobre crenças, medos e a sociedade.

Um menino brutalmente assassinado, casas abandonadas, pactos sombrios e adolescentes que se autoflagelam são apenas alguns dos elementos que compõem o perturbador As Coisas Que Perdemos no Fogo, isso sem contar com o ingrediente principal: as mulheres que ateiam fogo em seu próprio corpo como protesto. Mariana Enriquez trabalha o medo aproximando seres fantásticos e crendices com acontecimentos reais, próximos às pessoas e de características marcantes do povo argentino – culturais e históricos. Alguns, talvez, não sejam fáceis de serem “vistos”, mas estão lá.  É tenso e, ao mesmo tempo, incrível e instigante.

A boa ambientação dos contos e a presença marcante da cultura argentina são algumas das principais riquezas do livro. A descrição dos cenários é sucinta, porém valiosa para o leitor entender o contexto político/social/econômico e visualizar os locais citados na obra e que, muito provavelmente, ele não conhece. Mesmo quem já foi ao país, reconhece uma outra Argentina nas páginas: menos turística e mais caótica. De certa forma, mostra as feridas maquiadas nos cartões postais, mas que ajudam a entender a realidade local, pelo menos, os seus medos.

A escrita de Mariana Enriquez é fantástica e envolvente. Mesmo sendo um livro de contos, a autora consegue, já nas primeiras linhas de cada texto, cativar o leitor tanto pela trama quanto pelas personagens. O mais interessante é que ela mantém a mesma qualidade em todos eles, algo difícil neste formato de publicação, no qual geralmente uns são muito bons e outros, nem tanto. Esta virtude reflete na nossa vontade de querer ler mais e mais histórias, um engajamento difícil de encontrar em livros de contos, que não possuem “ganchos” narrativos e basta um conto ruim para prejudicar toda a fluidez da leitura.

Uma das facetas do terror é deixar o leitor na dúvida, principalmente no que tange elementos sobrenaturais. Será que aquele fato aconteceu? Forças sinistras existem? Ou tudo é fruto do medo que existe na mente? Isso é o que mais me fascina no gênero e está presente no trabalho de Mariana Enriquez. No entanto, esta falta de certeza é acompanhada de muitas reflexões sociais e são elas que dão mais medo em As Coisas Que Perdemos no Fogo. No terror é comum conclusões não tão amarradas, justamente para o leitor ficar com uma certa dúvida. Essa insegurança gera aflição, o que é bom. Fiquei muito pensativo após a leitura de certos contos e horrorizado quando notei aonde a autora queria chegar, quais questionamentos queria instigar no público. Porém, não fiquei plenamente satisfeito com todos os desfechos. Normal. Em alguns (poucos), senti a necessidade de algo a mais. É difícil explicar, mas, talvez, o clímax precisasse ser melhor desenvolvido.

As Coisas Que Perdemos no Fogo é um livro com inúmeras qualidades, entretanto, tem algo que precisa ser destacado: as personagens femininas. São fascinantes! Mariana Enriquez nos mostra mulheres cheias de personalidade, anseios e dramas complexos. Elas apresentam uma força incrível (sinceramente, não sei de onde vem), são verdadeiras protagonistas! O último conto – que dá título ao livro -, inclusive, é um soco no estômago (o mais aterrorizante) e mostra a necessidade da mulher de ainda precisar lutar pelos seus direitos, espaços e liberdades.

O trabalho de Mariana Enriquez é admirável por vários aspectos: desde a qualidade da escrita, de contextualização e do desenvolvimento de personagens até a mescla de crítica social e horror. Além do mais, mostra que as mulheres escrevem, sim, uma boa trama de terror. Só precisam de mais espaço! Certamente, uma fonte de inspiração para outras. As Coisas Que Perdemos no Fogo é também uma ótima oportunidade de sairmos um pouco daquele condicionamento de ler apenas língua inglesa e conhecer mais dos nossos hermanos argentinos, da sua literatura e cultura. Espero que outras obras da autora cheguem ao Brasil em breve. Afinal, os bons precisam ser lido!

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Apaixonado por histórias, tramas e personagens. É o tipo de leitor que fica obsessivamente tentando adivinhar o que vai acontecer, porém gosta de ser surpreendido. Independente do gênero, dispensando apenas os romances melosos, prefere os livros digitais aos impressos, pois, assim, ele pode carregar para qualquer lugar.

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